sexta-feira, janeiro 30, 2004

O rio onde nascem as nêsperas


Quando os braços tinham no carvão os beijos inesperados das nêsperas, ainda me lembro de ti na prata nebulosa das margaridas.

Um vulcão adormecido é atravessado pela platina de pólen, a temperatura nasce nas paredes de neon por onde o corpo passa, ainda me lembro do rio que partiu as pedras de aço.

Mas há sombras nos lugares que ficam com as gotas perfumadas da cinza.

A preliminar nuvem das alegrias desvanece a aparente gordura simplista do gume, ainda me lembro do setembro das raias silenciosas.

Mas há ainda frutos circulares nas grutas húmidas das falácias, o pão saloio dos pensamentos permanece no lume brando das plantas pálidas.

O planeta tépido dos legumes trespassa a cauda vegetal dos cometas, o declive inóspito dos cigarros da alma.


quinta-feira, janeiro 29, 2004

A bandeira das lagoas


As sementes da planície sentem-se nas curvas da estrada temperada, e a sede criou plantas pulmonares nos lírios que crescem do suor dos lábios.

A tela da tua pele com tinta transparente ainda por pintar.

Uma tempestade de luz branca percorre as pernas, até ao centro das lagoas onde os teus cabelos deixam decisões nos novelos das alcateias.

Por isso andar de barco sobre a espuma da lã me fascina.

O lobo mais marginal no pensamento da carne é um tentáculo de fibras intermináveis, e todos os dias os lodos são ultrapassados pelas enguias vermelhas.

A descoberta que também sou uma parte do sino do dia, uma melodia transporta-me para as algas oxigenadas.

Tu és uma bandeira de fogo que desfralda o mar sobre a neve nítida ... e o gelo descongelado da memória predispõe-se à tempestade oleosa da morte...

Os dois relógios têm as horas da alma alinhadas nas almofadas.

Sempre te amei húmido no suor difícil dos nevoeiros.


sábado, janeiro 24, 2004

Fragância


Engraçado como o corpo se esfola por sentir e nunca nada vê além do momento. Foi preciso que me tocasses para que conhecesse a fragância do tempo.

Foi preciso que perdesse a alma por uma noite, e vivesse no eco silencioso das paredes que absorvem as histórias das pessoas.

Foi preciso que não vivesse fora das muralhas da pele, no barco alucinante que transporta as pinturas da ebulição dos corpos.

Tudo o que ia escrever sobre a tela foi rapidamente pelas mãos, para a flora da tua pele, onde se desenhou o suor umbral e maquinal do fogo.

Encontrei-te no som interminável do precipício doce do desejo.

Ficaram vestígios da viagem por toda a casa, principalmente no quarto, onde a água sucumbiu ao voo nobre das águias.

E na manhã seguinte restou-me o livro branco da nicotina com que se escreve a imortal memória. O oceano onde se guarda a desarrumação dos brincos e das pulseiras pela casa.


segunda-feira, janeiro 19, 2004

Sombra simples


Inverto a sensação benigna dos pardais até encontrar a mais fulgurante e sensata perversão que faça algum sentido.

Antes que se feche completamente a porta maresia da minha própria ausência. Antes que as plantas ocultas do incenso construam máscaras irreconhecíveis.

Até eu próprio ter um sentido inverso ou um sentimento que alimente o verso infinito da busca. Gosto dessa vertigem húmida que paira sobre o alterego desconhecido.

Não me conheço em qualquer espelho que tenta imitar o corpo.

Há uma dualidade extrema em todo o vinho interior das palavras. Há uma sensualidade de milho que se prenuncia desses universos incógnitos.

O esgoto da inocência é um mar na margem florestal de uma estrada aritmética do corpo fácil.

Gosto que a água perplexa seja definitiva e um meio caminho para a tranquilidade da lua.

Há dois líquidos de uma extrema solução nas unhas da vida. O eu simples e a sua sombra convexa.



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Inspiração poética no argumento de Sentidos In-versos de Ricardo.

segunda-feira, janeiro 12, 2004

O sol do inverno


Esta noite deste-me a paz límpida dos pássaros. Vou guardar este açúcar quente do sol no plátano das almofadas. Vou guardar essa visão das águias num farol de escadas.

Uma viagem vermelha cai sobre o cristal das tuas pernas. Afinal descobri alegre que o tempo não teve tempo.

Quando as raias silenciosas do nevoeiro se sobrepuserem às pinturas do mar, vou poder colocar novamente a música doce da tua imagem reflectida no vidro da memória.

Um final segredo antecipado no início da aventura da pele.

Só tu e eu sabemos onde pudemos dar as mãos.

A electricidade das estrelas vai-me dar coordenadas copérnicas para os anos verdes que crescem sobre as escamas.

Uma lágrima lembra-me um sorriso do principal desejo.


sábado, janeiro 10, 2004

O aroma do coração invisível


A tua lava percorre aromaticamente a forma do meu desejo, e aproxima-me de um inverno de gotas labirínticas sem paredes definidas.

Havia uma lápide de licor tua numa planta de um livro quotidiano ... e eu li-te ... foi assim que te encontrei pela primeira vez no meio da minha floresta de sémen.

Hoje encontras-te sentada numa fotografia de algodão e espinhos, há uma imagem topográfica do teu corpo que nasce numa nova artéria.

Eu deixo a alma trespassar o vento até à brancura vegetal de uma criança ... mas na rosa desse caminho de leite nunca vi o trepidar do teu coração.

E não existe nenhum mapa no mundo que me catapulte para essa brandura de aço, o quente diz que o perfume do teu orgão é invisível ao desejo.

Foi por isso que morreste dentro de uma folha de jornal na memória, as gotas de um delfim oceânico disseram que seria sempre assim, dias e não anos.

Em poucos dias as feridas sobre a pele acabaram por se sobrepor à invisibilidade do aroma que vinha perto do teu coração.


quarta-feira, janeiro 07, 2004

O fantasma que descansa na maresia


O meu gato não é meu, nem de ninguém. Não pertence a si próprio, porque os gatos ainda não têm palavra para inventar que têm próprio.

E o vazio do silêncio não lhes deixa feridas na maresia dos sonhos. As máquinas com açúcar que nascem na lua a seguir ao sono.

Uma serenidade plena no deserto dos olhos transporta-nos ao tempo das areias quentes, ao plátano do pensamento quando não há nada por que partir.

E hoje a única lágrima do tempo é o fantasma perfumado de uma pátria.

As mulheres portuguesas ainda misturam a vagina pela vegetação da vontade, mas sentados nas muralhas, mentimos com os músculos dos livros de história.

Por isso é que os gatos não têm livros, porque não há nada de novo na inocência fingida dos bébés. Tudo tem o mesmo cheiro de há milénios.

O olhar antigo e húmido do nevoeiro não incomoda ninguém, e hoje as ondas só servem para levar os desejos que guardamos no pó dos poemas.

Mas continua no segredo do mar um império que nos foi prometido pela água. Há quinas que ainda não têm terra.

E a seguir ao quinto ainda há-de vir um sexto império. Se deus nos quiser.


domingo, janeiro 04, 2004

Lusitana lápide


Portugal ... quando te encontro é no vulto preliminar da terra, no nevoeiro húmido onde as plantas criam raízes para as tempestades já esquecidas.

Senta-te numa cadeira de pedra, espera pelo gume da morte, que hoje já ninguém conhece o rosto onírico do adamastor.

Deixa o frio ultrapassar devagar o calor do corpo.

Nunca mais vai haver uma tela onde a tua espuma da vitória vai voltar a brilhar, as esculturas das batalhas verdes pertencem ao voo dos pássaros.

A tua estria corporal percorre-me até ao patamar da invisibilidade, leva-me ao planeta onde passamos dos oitenta para os oito anos.

Podemos ver a espada do vento a cantar o silêncio nos campos, o sangue da vontade humana a escrever uma cor lenta na tua bandeira hasteada.

Afinal havia uma lápide lusitana que tinha o meu nome quando nasci. Dantes, quando o mar era secreto ... pensava que era um sonho real que nascia num pranto de uma leitura.

Eu e tu ... devemos ser uma pétala de que deus se esqueceu na pressa da dor.

É melhor assim, posso libertar-me da lápide, experimentar a luminosidade da guitarra no corpo, basta ler algumas palavras do planeta onde se partiam para as glórias.

Esse planeta é um parto português num livro desenhado, havia um homem com um só olho que via com o corpo de todos nós.

Portugal ... não finjas a vida, não sejas como os teus filhos.