terça-feira, novembro 18, 2003

Fomos


Hoje somos um murmúrio preto.

O som de uma sombra que procura cega o vulto hirto.

A verdade dorme num sonho de gumes confortáveis, já não há a dor jovem e transparente da vitória, já não se faz sanguar os gritos desconhecidos do mar.

As gaivotas são tranquilamente mudas. São o luto de Portugal.

Havia um terreno líquido a percorrer, uma Bíblia que inflamava o músculo até à exaustão. Havia a chuva humana que cantava os frutos originais d'Os Lusíadas.

Os livros vão-se comendo com a espada de uma viagem ao vazio. Escondemos a bandeira luminosa do nosso pai num livro de pó.

Para esquecer o suor. Para desvanecer a glória. Para enganar o sangue.
Para deixar de ser um pouco de cada vez que acordamos.

As mulheres já não esperam pela temperatura musical. As crianças pensam que não existe verdade na voz do vento. Que foi uma primavera de papel na História.

Não vivemos, não matamos o corpo com o cansaço da glória, nunca houve muralhas fora de páginas brancas.

As quinas são nevoeiro liquefeito, palavras escritas com pressa.

Já nem Deus sabe quem fomos.


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